10.5.08

A outra Clara

Quando olho para a fotografia lembro de Clara como se fosse hoje.

Ela se entregava à vida como uma gata se entrega ao sol, inebriada pelo calor e sem recear os predadores que a espreitavam das sombras frias ao seu redor. Ela sequer sabia o que era um predador e se deitava assim, lânguida e vagarosamente, sem medo de nada e aguardando pelos prazeres que, imaginava, o mundo tinha a obrigação de lhe trazer. Sob a luz, seus movimentos construíam posições e imagens provocantes, com suas alvas partes explicitamente expostas. Ela era perturbadora e atraente em sua mistura de sensualidade e inocência.

Clara era uma obra de arte cambiante, como se suas formas abrigassem um conteúdo raro e misterioso que complementava perfeitamente o prazer quase proibido que seu corpo prometia. Seu jeito tinha feitiço e eu me perdia nos detalhes de minhas vontades: retirar vagarosamente seus sapatos e as meias, descruzar suas longelíneas pernas, me embriagar em suas carícias, e assim por diante...

Clara queria quebrar as regras e revolucionar sua vida, mas ela própria se aprisionava: só tinha silêncios e poucos sorrisos. Só tinha redemoinhos de pensamentos em torno de si mesma e poucos momentos de águas serenas em sua mente agitada. Só tinha amigos incertos e nenhuma amizade verdadeira. Só tinha meus olhos capazes de tocar no fundo de sua alma, e nenhuma outra alma capaz de receber os seus olhares. Só tinha fantasias e nenhum sonho. Tentava ser o que o mundo não lhe permitia ser - e isso a deixava triste e solitária. Vivia somente no passado e no futuro, sem perceber que tudo acontecia no presente. Ela se deitava na cama e esperava a chegada de um príncipe encantado, que nunca chegava. Clara, no fundo, não sabia o que buscava e se conformava no inconformismo. E eu, ali, sempre por perto, registrando a magia de seus momentos, sem poder fazer parte deles.

Agora Clara está chegando à idade adulta e como não sabe, ainda, desviar-se, a primeira bofetada atinge-lhe em cheio o rosto liso e sem manchas, como uma chicotada vinda do nada estalando a realidade da dor de viver em sua face limpa. Uma pancada seca que se espalha numa ardência crescente e termina por escorrer em lágrimas para seu colo trêmulo. E eu não estou por perto para alcançar-lhe um lenço e confortá-la com meu abraço. Eu suspiro de impotência, enquanto as lágrimas regam sua alma.

Mas a vida é assim mesmo e ela apenas está pagando o preço para aprender a desviar-se, como todo o mundo. Daí para frente ela se entregará de uma forma diferente, com mais leveza, mais sorrisos e mais palavras. Clara se abrirá completamente para a vida e descobrirá a diferença entre a realidade e a ilusão, entre o possível e o inalcançável. Ela saberá, então, que seu futuro será construído somente com a sucessão de seus presentes, um após o outro, e que sua vontade tem mais poder do que as regras que ela mesma escreve. Ele se libertará de tudo que a limitava até agora e será feliz.

Daquele tempo restará apenas uma fotografia na parede dos meus sonhos, que poucas vezes lembrarei de olhar. Clara chegou, como eu sempre soube que chegaria, e eu parti.
fotografia: blog daytrippergirl

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