28.4.08

O vazio, o farol e o cão

Tudo está vazio, há silêncios por todos os lados e um céu escuro cheio de nuvens. Numa fresta surge a lua, pouco mais que um fio crescente, logo escondida pelo movimento do céu. O banco vazio, a noite vazia e eu aqui, cheio de perguntas. Olho o farol e resolvo sentar no banco junto ao acesso à praia, para olhar o ritmo tranqüilo e circular da sua luz, que me atrai como um imã. O farol é calmo, em seu movimento contínuo. Assim também é o cão de pêlo claro que se aproxima sem receios e atende meu chamado amistoso. Ele fareja o saco de supermercado em que coloquei o par de tênis para andar descalço na praia e se acomoda junto a mim, receptivo aos meus carinhos. O cão é direto na sinceridade de suas intenções. Eu o acaricio e ele me olha com o olhar mais cristalino do universo pois sabe que meu sentimento é verdadeiro, assim como o dele. Dou-me conta como é fácil estabelecer um relacionamento sólido através do afeto, sem envolver razão alguma no processo. Criamos, nós dois, um momento especial, na noite vazia.
É um cachorro grande e forte, e muita gente teria medo de se aproximar de um bicho assim. Ele encosta a cabeça em meu colo e põe a pata em minha perna, num gesto surpreendentemente amoroso. Seu focinho é cheio de cicatrizes. O cão é tranqüilo, como o farol, como a noite e como eu, dali em diante. Depois de alguns afagos ele se afasta alguns passos e deita como um guardião silencioso, como um companheiro fiel de uma vida inteira. Esse cachorrão tem um olhar bondoso e altivo. Vou até ele e me despeço, afagando sua cabeça. Ele me acompanha por um quarteirão e ao chegarmos na esquina atrás do hotel um outro cão late desafiadoramente em nossa direção. Meu novo velho amigo apenas dirige um rápido olhar para o autor do latido e o desconsidera. Minha impressão é que, nitidamente, o outro é um velho conhecido que ele ignora por alguma razão canina. Ele segue em frente e dobra a esquina seguinte, sem sequer olhar para trás.
Resta a rua deserta, cheia de pontas sob meus passos nus, pípedos em nada paralelos que me espetam a caminhada. Mas a noite, agora, já não está mais completamente vazia. Percebo que minha mente está cheia de significados, após o farol com sua luz significante e após o cão carinhoso e amigo. Vou desviando, na pouca claridade dos postes, das desagradáveis saliências do calçamento irregular no caminho até a casa, poucas quadras adiante, massageando os pés e a alma.
Amanhã, pela manhã, correrei um pouco na praia, quase vazia de gente e repleta de aves marinhas, até além do farol, e caminharei outro tanto, na volta. Amanhã, encontrarei um pescador apanhando pequenos marisquinhos na beira-mar, para prepará-los com ovos e fazer pastéis, segundo me responderá. Verei as marcas que uma das aves deixará na areia úmida, quando alçar vôo para fugir de meus passos próximos. Duas marcas mais rasas e outras duas mais profundas, onde abandonará o chão rumo ao céu cheio de nuvens finas prenunciando o sol que em seguida me marcará a pele. Na areia, por todo o lado, verei as pegadas nítidas de um cachorro grande, mas não me ocorrerá que poderão ser do cão da noite vazia do farol.
Amanhã esquecerei o vazio, o farol e o cão, mas em algum lugar dentro de mim, no cantinho dos significados, para sempre eles estarão guardados.
em 30 out 2003

3 comentários:

Anônimo disse...

Adoro os seus adjetivos. Eles dão toda a dimensão do que você vê e sente e a qualidde do que escreve. Muito. Completo, denso, amoroso, terno, profundo e simples.

Anônimo disse...

Nós temos afinidades :)

Criatura disse...

:)

Esse cão, depois fiquei sabendo, era conhecido pelos veranistas e moradores de Ohio South como Urso. Cão sem dono. Ainda o vi por mais uns dois verões e ele sempre me reconhecia. Depois sumiu.