Quando abriu os olhos sua boca estava fechada, as mãos e a mente abrindo-se, lentamente despertando na consciência de mais um dia maravilhoso de vida. Nesta manhã não recordara sonho algum. Gostava de despertar no meio de um sonho, pois isso sempre lhe inspirava os pensamentos do dia, criava alvos, motivos. Quando não acontecia assim, ficava ansioso para sonhar acordado. Olhou preguiçosamente para o criado mudo que prontamente mostrou-lhe, em silêncio – obviamente, que eram 8 horas da manhã. Se todos os criados da casa fossem discretos como aquele, seria muito chato passar os dias ali, pensou – e esse foi o primeiro e estranho pensamento que teve desperto. A claridade, portanto, já havia expulsado a noite há mais de duas horas, calculou, na seqüência do segundo pensamento. Ele previa que este seria um dia especial e suas ações deveriam ser cuidadosas. Já estava antevendo o momento em que, lá pelo meio da tarde, estaria enfrentando algum novo desafio, alguma prova, mais um teste aos seus sentidos e a sua capacidade de autocontrolar-se. Hoje, a coisa assumiria dimensões incomparáveis a todas as situações semelhantes que já havia enfrentado anteriormente. Subitamente sua mente cumpriu o ciclo do devaneio e saltou abruptamente para frente, até o momento presente, tão distante do despertar que nem parecia pertencer ao mesmo dia. Estava pendurado pela perna esquerda, de cabeça para baixo e olhando o trânsito se resolvendo aos poucos, com a dificuldade de sempre, vinte andares abaixo de seus olhos arregalados. Balançava e queria gritar, mas alguma coisa impedia – e isso o agoniava ainda mais. Queria pedir ajuda, chamar as pessoas lá em baixo, mas as palavras não saíam. Sabia que seria difícil, mas jamais imaginara correr o risco de agora. Nada do que estava acontecendo se encaixava no que esperara, e tampouco nas alternativas presumíveis que considerara. O ruído absurdo lá em baixo assumia uma proporção assustadora e o seu silêncio era vítima indefesa do barulho do mundo. Ele precisava ordenar os pensamentos e encontrar uma solução antes que o sol desaparecesse no horizonte. Podia ver a lua cheia no céu azul, balançando atrás de sua perna, como um pêndulo marcando a passagem dos segundos preciosos. Fechou os olhos e viu a imagem dela – a criatura responsável por toda esta loucura. Onde estaria, agora? Quanto tempo passaria até que percebesse o que realmente deveria fazer para catalisar toda essa convergência e tensão? Mas ele era confiante e começou a se acalmar, apesar do tempo que escoava de maneira inexorável. Mais cedo – ou antes: tarde, do que nunca – as peças se encaixariam, mesmo que temporariamente, e a solução duraria para sempre, em seu intervalo de existência. Colocado assim parece complicado mas é tudo muito simples. Acontece e pronto: uma perturbação fugaz e cheia de energia na realidade para, logo em seguida, tudo “voltar ao normal”, naturalmente. Assim é a vida, alternando tempestades e calmarias. Abriu os olhos, fechou a boca impotente e respirou lentamente o ar morno que subia do concreto. Desligou-se do problema e começou a construir devagar um novo caminho possível. Mergulhou tão fundo em seus pensamentos que demorou a perceber as formas e os movimentos suaves na sua frente. Ela estava ali, permitindo espaços e volumes generosos, frestas, atalhos, um clarão de promessa no vão escuro, dia e noite ao mesmo tempo, olhares e vontades... Olhou para ela e percebeu que estava no lugar certo, no momento certo, na cadeira e posição exatas. A única coisa que continuava balançando era o seu pensamento, e ainda faltava muito para o sol se por.
(Vitória/Rio, novembro de 2004)
(Vitória/Rio, novembro de 2004)
Um comentário:
e nem tinha bebido...
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